terça-feira, 16 de novembro de 2010

Leitura

Matéria publicada no jornal Folha de São Paulo, de 16/11/10




"Crioulinha..."



RUBEM ALVES



UMA DAS MEMÓRIAS felizes que tenho de minha infância me leva de volta à escola. Eu estava no terceiro ano primário. Era a aula de leitura. Não, não era aula em que líamos para a professora ouvir e corrigir. Ao contrário, era a professora que lia para nos deliciar. Foi assim que aprendi a amar os livros. Não aprendi com a gramática.



Dizem que os jovens não gostam de ler. Mas como poderiam amar a leitura se não houvesse alguém que lesse para eles? Aprende-se o prazer da leitura da mesma forma como se aprende o prazer da música: ouvindo. A leitura da professora era música para nós.



A professora lia e nós nos sentíamos magicamente transportados para um mundo maravilhoso, cheio de entidades encantadas. O silêncio era total. E era uma tristeza quando a professora fechava o livro. "O Saci", "Viagem ao Céu", "Caçadas de Pedrinho", "Reinações de Narizinho". Esses eram os nomes de algumas das músicas que ela interpretava. E o nome do compositor era Monteiro Lobato.



Mas agora as autoridades especializadas em descobrir as ideologias escondidas no vão das palavras descobriram que, por detrás das palavras inocentes, havia palavras que não podiam ser ditas.



onteiro Lobato ensina racismo. E apresentam como prova as coisas que ele dizia da negra Tia Anastácia...



A descoberta exigia providências. Era preciso proibir as palavras racistas. Monteiro Lobato não mais pode frequentar as escolas...



Assustei-me. Senti-me ameaçado. Fiquei com medo de que me descobrissem racista também. Tantas palavras proibidas eu já disse.



É preciso explicar. Naqueles tempos, tempos ainda com cheiro da escravidão, havia um costume... As famílias negras pobres com muitos filhos, sem recursos para sustentá-los, ofereciam às famílias abastadas, brancas, para serem criados e para trabalhar. Assim era a vida. Foi assim na minha casa. Veio morar conosco uma meninota de uns dez anos, a Astolfina, apelidada de Tofa. Escrevi sobre ela no meu livro de memórias "O Velho que Acordou Menino". Cuidou de mim, dos meus irmãos, e morou conosco até se casar. Acontece que, ao contar sobre ela, eu usei uma palavra que fazia parte daquele mundo: "crioulinha". Era assim que se falava porque essa era a palavra que fazia parte daquele mundo. Imaginem que, obediente à "linguagem politicamente correta", eu, hoje, tivesse escrito no meu livro "uma jovem de ascendência afro"... Não. Esse não era o mundo em que a Astolfina viveu.



As palavras são a carne do mundo. Não podem ser substituídas por outras, ainda que mais verdadeiras, ainda que sinônimas. É preciso dizê-las como foram ditas para que o mundo que foi fique vivo novamente. A história se faz com palavras que faziam parte da vida. Aí, então, se pode explicar, como nota de rodapé: "Era assim. Não é mais...".



Estou com medo de que as ditas autoridades descubram que usei a palavra racista "crioulinha" para me referir àquilo que, hoje, seria "uma jovem de ascendência afro".



Estou, assim, tomando minhas providências. Para que não coloquem meu livro no "Índex" vou apagar a palavra "crioulinha" do texto e, sempre que precisar me referir à Tofa, direi que ela era uma governanta suíça e ruiva, uniformizada de branco e touca, para evitar que fios de cabelo caíssem na comida... Assim, meu livro purificado do racismo poderá frequentar as escolas...

domingo, 14 de novembro de 2010

Reflexão


Sobra mau gosto, falta brincadeira




A EXPRESSÃO "brincadeira de mau gosto", agora, virou moda entre crianças, adolescentes e até adultos.



E pior: ela tem sido usada, principalmente pelos mais novos, para explicar as situações mais absurdas e até tragédias que acontecem em nosso mundo.



Você se lembra, caro leitor, do garoto de nove anos que morreu na escola que ele frequentava, vítima de um tiro?



Pois em uma reportagem que abordava o assunto, colegas do menino chegaram a enunciar a hipótese de a tragédia ter ocorrido pelo descontrole do que seria, inicialmente, uma "brincadeira de mau gosto" entre colegas.



E o tal "rodeio de gordas", uma espécie de jogo universitário em que alunos da Unesp do campus de Assis demonstravam interesse em paquerar alunas com sobrepeso e, depois de conquistar a atenção delas, agarravam as garotas por trás e tentavam se manter nessa posição o maior tempo possível, simulando um rodeio? Da mesma maneira, o evento foi descrito por alguns alunos como uma "brincadeira de mau gosto".



Em escolas, é comum crianças serem humilhadas com apelidos, por colegas, ou serem excluídas e isoladas pelos mais diversos motivos e, da mesma maneira, as crianças nomeiam tais situações com a mesma expressão.



Até programas de televisão, agora, exploram o tema com as já conhecidas "pegadinhas" que, invariavelmente, colocam pessoas em situação de vexame, humilhação etc. Pois não é que as pegadinhas são chamadas de brincadeiras? De mau gosto, é claro. Que pena que juntamos nessa expressão conceitos tão antagônicos.



Brincadeira supõe, acima de qualquer coisa, diversão das pessoas envolvidas. Brincar é um ato lúdico muito próprio da infância, e que acaba por se estender pela vida toda. O que seria da nossa vida sem as brincadeiras e o prazer que elas proporcionam?



Por isso, fica difícil de entender a popularização da expressão em questão. Sabemos que o tempo que vivemos não ajuda os mais novos a construírem um sentido para a vida. Ao contrário: vivemos uma época dominada pela cultura do tédio, situação muito bem abordada e explanada por Yves de La Taille em seu último livro, "Formação Ética do Tédio ao Respeito de Si" (Editora Artmed).



Concomitantemente, a importância do poder de um sobre o(s) outro(s) e o valor do individualismo também colaboram para esse clima de vazio da existência que começa a ser sentido por muitos, já na infância.



Em conjunto, talvez essas características do mundo contemporâneo, combinadas com algumas outras, tenham favorecido o surgimento e o crescimento das tais "brincadeiras de mau gosto", cada vez mais frequentes e presentes na vida dos mais novos. E é bom lembrar que o lugar de vítima e de agente, nesses casos, podem se alternar na vida de qualquer um deles.



Precisamos intervir nessa história para que crianças, adolescentes e jovens entendam que a vida social sustenta a vida pessoal e, portanto, quando não colaboramos para que os relacionamentos sociais sejam respeitosos, comprometemos nossa própria vida pessoal.



Da forma que temos permitido e inclusive participado de várias maneiras da criação dessas chamadas "brincadeiras de mau gosto", desconstruímos o conceito tão caro do ato de brincar, principalmente na infância e, mais ainda, contribuímos decisivamente para uma cultura de desrespeito, de si e do outro. É um futuro com tais características que desejamos aos nossos filhos?









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ROSELY SAYÃO é psicóloga e autora de "Como Educar Meu Filho?" (Publifolha)

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